Fontes: http://www.culturaalternativa.com.br/geral/outross/item/10113-a-mao-de-deus
Segunda, 14 Novembro 2016 16:00
A MÃO DE DEUS*
"Conforme alertava Nelson Rodrigues: os “idiotas da objetividade” não
tem imaginação. Sendo assim, nunca alcançarão a maioridade existencial.
Seguindo esse modelo, corremos também o risco de acreditar cegamente que
somos “restos sub-humanos de uma grande raça”, segundo a avaliação
expressa pelos homens dos Mundos Cósmicos, em O futuro começou (1972),
de Isaac Asimov. Na tese debochada de Jerry Seinfeld, presente em O
melhor livro sobre o nada (2000), o autor contraria Aristóteles e a sua
consagrada tese de que “o homem é um animal racional”, afirmando que há
muitas práticas, atestando como os seres humanos não são inteligentes.
Como exemplo, Seinfeld revela: “Pelo visto, o que estava acontecendo é
que estávamos praticando uma porção de atividades que estavam quebrando
as nossas cabeças. Decidimos não parar de fazer essas atividades e
inventar um negócio para que pudéssemos continuar a gozar do nosso
estilo de vida racha-crânios. O capacete”.
Colocar a nossa cabeça a prêmio, portanto, significa subutilizar o
potencial criativo da imaginação, impedindo que a realidade seja mais
inventiva. Assim, infelizmente, ignora-se o sábio conselho dado por
Celso Furtado, em O capitalismo global (1998): “o fundamental é ter
confiança na própria imaginação e saber usá-la”. Faz-se necessário,
segundo o economista, combinar dois ingredientes para melhor investigar a
realidade e, assim, não reproduzir o saber convencional: “imaginação e
coragem para arriscar na busca do incerto”. Aumentando o volume da
pressão e da tensão, estamos promovendo o programa de governo chamado
“Tesão Zero”. Confundida como castração corporal, espiritualidade vem
sendo mal tratada também como dogma. A culpa vem servindo de controle
social autoritário, enquanto a responsabilidade se esvai pelos caminhos
da omissão do sujeito. O Deus que grita vem triunfando sobre o Deus que
brinca de gangorra no playground.
Minha fé prefere caminhar ao lado de Riobaldo Tatarana, o jagunço
filósofo de Grande Sertão: Veredas (1956), obra prima de Guimarães Rosa,
para quem, “sem Deus, a vida é burra”. Evoco com mais precisão a fala
de Riobaldo: “Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança:
sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus,
há-de a gente perdidos no vaivém, e a vida é burra. É o aberto perigo
das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar, é todos contra
os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no
fim dá certo”. Religião é algo que diz respeito à dimensão insondável da
convicção espiritual. Mas, sem pretender ferir novamente
suscetibilidades, pessoalmente fico com a explicação do mencionado
personagem roseano: “Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico:
todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é
que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer,
desdoidar. Reza é que sara da loucura”.
Thomas Mann, poeticamente, em Doutor Fausto (1947), chama Deus de
“Doador de todos os talentos”. Talento é o que temos de melhor em
matéria de luz própria e potência criativa. A verdadeira espiritualidade
não nos faz anjos, mas plenamente humanos. A alma é o corpo em festa.
Representa o princípio do prazer que fundamenta as melhores realidades. E
as melhores realidades têm como sustento a plenitude de nossos sonhos e
nossas fantasias. Por isto, Einstein dizia: “A imaginação é mais
importante do que o conhecimento”. Paulo Leminski, em Poesia: a paixão
da linguagem (1987), projeta instigante maneira de refletir: “o
pensamento que alimenta e abastece uma experiência criativa tem que ser
pensamento selvagem, não pode ser canalizado por programas, por
roteiros, tem que ser mais ou menos nos caminhos da paixão”.
A intuição é a nossa primeira inteligência porque se afirma na
sensibilidade tocada pela magnitude dos mistérios da existência. Também é
muito libertário acreditar, conhecer e entender o que se passa. A razão
é o pouso feito pela ave da emoção. Temos assim as duas paixões
fundamentais: a paixão da vida e a da morte – o amor e o ódio. Sabemos
que o amor e o ódio são paixões complementares, e aprendemos a ver na
ambivalência afetiva o segredo mais íntimo da nossa vida sentimental.
Nesse contexto, é bastante oportuna a observação feita por William
Faulkner, em Uma fábula (1954): “O mal faz parte do homem; o mal, o
pecado e a covardia, da mesma forma que o arrependimento e a bravura. É
preciso a gente acreditar em tudo isso ao mesmo tempo ou então em nada.
Acreditar que o homem é capaz de todos os pecados, ou de nenhum”.
Acreditar, portanto, é inteirar-se para participar ativamente da
sinfonia de vontades que compõem o mundo. Sem imaginação, a vida não é
verde: é cinzenta. A imaginação não é um plano de fuga, diferente do
pregado pelos realistas obtusos de plantão. O que nos anula é a
repressão, esse cala-boca que nos impõe a falar somente com os nossos
botões. Por isso, “falar equivale a rebelar-se”, com bem nota Faulkner.
Perguntada se acreditava em Deus, a filósofa Marilena Chauí
respondeu: “melhor que acreditar, eu conheço Deus”. Conhecer é tornar o
estranho familiar, assimilar para melhor apreciar. Por isso, é chocante o
trabalho de certas autoridades religiosas em tornar Deus cada vez mais
estranho e distante, aumentando a nossa ignorância sobre Ele.
Infelizmente, em um livro chamado A importância de conhecer a Deus
(2007), o pastor Silas Malafaia nega a fé instruída: “Ninguém precisa
ser profundo conhecedor de eletrônica, fazer um curso de manutenção de
informática ou de mecânica de automóvel para acreditar que um aparelho
de televisão, um computador e um carro funcionam. O mesmo vale para a
nossa fé em Deus!”. A fé não é a falsa consciência, pois, é conhecendo a
verdade, que ela nos libertará. E o que é a verdade? É o fruto maduro
da imaginação que transforma a realidade em realização.
* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal.
Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela UFMG. Graduando em
Letras pela UnB.
Este post é colaboração
Por Marcos Fabrício Lopes da Silva*
Obs. Texto colaborativo. Nao expressa a opinião do site e editores."
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